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Toponímia celta (V): o tema dubr-

Um tema interessante de origem céltica, com presença na Gallaecia, mas não só, é o tema dubr-. Ward (1996) compila-o como *dubros, que é, ao mesmo tempo 'escuro' e 'água'. Nisso segue a Matasovic, que parece confundi-lo com *dubos, com efeito 'escuro'. De modo que *dubros ficaria apenas para 'água', dando apelativos nas línguas célticas modernas: dobhar em irlandês, dwfr em galês, dour em córnico e em bretão. E com essa raíz dá também hidrónimos na área de influência indiscutidamente céltica: Dover, antiguamente Dubris, na Inglaterra; e Dourres na França, e até um rio Tauber na Alemanha.

Algumas evidências

Na Galiza e na antiga extensão da Gallaecia há o hidrónimo Dubra, que nomeia um Vale do Dubra transformado em corónimo de concelho. Mas não só: estão aí as formas Dobro, Banhola de Dobro, Fonte Dobra, todas na Galiza; e também, fora dos atuais limites administrativos do país: rio Dobra e monte Dobra nas Astúrias, e também lá o Dubro, um maciço oriental dos Picos de Europa, e já tocando a meseta, mas em terra da antiga Gallaecia, Collada de Dobres em Leão, Dobres na Vega de Liébana (Cantábria) e Dobro na província de Burgos. A respeito do monte Dobra e do maciço Dubro, que são hoje orónimos, está por ver se é certa essa identificação com o céltico dubros, mas a homonímia dá, no mínimo, para considerar. Também nesse grupo de evidências estão o Divor, no Alto Alentejo português, e o Douro, que tem produzido inumerável literatura, mas que está, para mim evidentemente, vinculado com este tema céltico. Em qualquer caso, até aqui as evidências (talvez salvando estas duas reticências), que não requerem maior explicação: hidrónimos com raíz hidronímica.

Penso, aliás, que neste grupo deveria estar também Trasdobos (agrónimo), que é nome de leira em Pobra de Trives e que talvez tenha sido *Trás-Dobros, com lenição de -r- por efeito da vibrante anterior, na preposição, significando, pois, uma 'terra por trás do cauce'. Ainda, como é lógico, o facto da preposição reforça ainda o protagonismo de Dob(r)os, e faz com que se pense diretamente num elemento que pudesse ter-se significado tanto: um cauce de água é a minha hipótese.

Andúrbios, Brea, Dorvisou

Finalmente, mais explicação requerem outros hidrónimos, muito menos evidentes e dos quais não se pode albergar o mesmo grau de "segurança". Proponho os seguintes três, com toda a precaução:

Andúrbios. Pradaria na paróquia de Azúmara, Castro de Rei. Aníbal Otero (1964) encontra aqui um apelativo comum com o significado de 'rego de águas pluviais', que faz derivar do latim turbidu. Considero, porém, que haja importantes inconsistências nessa explicação: por uma parte, não explica o salto semântico de turbidu para 'rego de águas pluviais' — nada escuro nem turvo, à partida. Por outra parte, esquece a relação do céltico dubros com o latino turbidu. Aliás, procurando nas fontes disponíveis (DdD, DDGM, TILG, TMILG e CODOLGA), as únicas ocorrências documentadas são no DdD, onde as duas entradas remetem para textos do próprio Otero, um dos quais referido concretamente ao vocabulário de S. Jorge de Piquim (1977). Não discuto que andúrbio possa ser hoje apelativo em áreas mais ou menos restritas do contínuo galego-português no limite entre a Galiza e as Astúrias. Mas não acredito que provenha de turbidu: antes ao contrário, parece-me que Andúrbio seja um típico pleonasmo, com a raiz *am- 'cauce' e o referido *dubr-os. Não é por acaso, segundo creio, que haja um Rego do Andúrbio, na freguesia de S. Julião de Vilaboa, concelho da Pontenova, no qual não faria sentido "do" se andúrbio significasse claramente 'túrbido'. E nada obsta, por outra parte, para que, de hidrónimo, tenha derivado em apelativo depois de esquecido o valor semântico do próprio hidrónimo. Não é o caminho habitual, sem dúvida, mas é a ausência de ocorrências além do recolhido por Otero que me faz imaginar esta hipótese: que Andúrbio(s) provenha de um *am *dubr-yo, com metátese nada estranha da vibrante (*dubr > *durb) e sufixo derivativo *-yo.

Brea. Regato na freguesia de S. Vicenço de Cespão, concelho de Boiro, que aparece documentado em repetidos documentos do tombo de Tojos Outos sob as formas Donabria, Duavria, Duavra, Duabra, Duaria e Doavria, que parecem muito próximas de *dubros. A explicação Duabra > Brea explica-se facilmente pelas tão habituais dissimilações provocadas pela confusão do início destas palavras com a preposição "de" e ainda com a contração "do". Ora, a presença dessa terminação -bria como uma constante na documentação também poderia estar a apontar, penso, para um étimo céltico *brîwâ 'ponte', com o qual o Donabria encontrado poderia não ser puro hápax e ter já relevância etimológica esse -n- intervocálico. Enfim, serva para apontar a minha confusão ao respeito, que me faz considerar este Brea como possível, mas com todas os signos de interrogação do mundo.

Dorvisou. Lugar da paróquia de S. Tomé de Ínsua, concelho de Vila de Cruzes. Não encontro constância documental de outra forma que não seja Dorvisón/Dorvisou. Proponho, para ele, uma leitura *dubr-is-, mais o derivativo *-ion- que Costa (2011) enxerga como provável diminutivo para outros casos. A metátese da vibrante não devia representar qualquer problema.

Enfim, eis três propostas sobre as que me atrevo a apontar esta etimologia. Estudos que venham, com mais dados e maiores conhecimentos, poderão ajudar a corroborar ou desmentir.

Referências:

  • Otero Álvarez, Aníbal (1964): "Contribución al léxico gallego y asturiano" in Archivium. Revista de la Facultad de Filosofía y Letras. Tomo XIV. p. 233-249. Universidad de Oviedo. Uviéu.
  • Ward, Alan (1996): A checklist of proto-celtic lexical items. VER

Comentários

  1. Interessante. No caso de "Brea" nom tenho dúvida de estares no certo. No que diz respeito ao tema *dubos, na minha tese postulei-no como origem dos dous topónimos "Duio" hoje existentes na Galiza.
    Saúdos!

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    1. O que me faz duvidar é, em qualquer caso, esse Donabria de Tojos Outos. Esse -n- aí é etimológico e perdido normativamente (e então aponta para uma origem afastada de *dubros), ou é falso histórico na cópia? Mantenho as minhas dúvidas.

      A respeito do tema *dubos > Duio, esse postulado teu está publicado ou é inédito?

      Obrigado!

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  2. e o Douro? agradecia algum esclarecimentos sobre a origem do nome...

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    1. Douro ou Duero cast. também está relacionado com a raiz dubr- ou duvr-. Como o latim não possuia a letra u escreverem Dvvr- ivm. Durius como veio a ser conhecido latim e Duwiro em árabe. É esta a razão entre da dupla pronuncia de ouro e oiro. ou touro e toiro ambas normas cultas do latim e do árabe.

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  3. Parabéns pela apresentação do espaço sobre toponímia galego-portuguesa. Aproveito para esclarecer que a letra D do nome do ribeiro de Divor (Évora) tem origem no árabe odi (rio). Registam-se formas como Odivor ou Odibor. Portanto este Divor está relacionado com o nome de varias localidades Ibor e com o rio Ibor afluente do Tejo mais no interior da península.

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