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Mitos de fundação: o caso da Galiza.


Mapa da Galiza ca. 1630,
de Iudoci Hondij e Johannis Cloppenburgij

É comum, entre os filólogos e os etimólogos, rechaçar as etimologias populares e fantásticas que em ocasiões se dão para algumas palavras, nomeadamente topónimos, e que contaminam a informação histórica e linguística que esses topónimos possam oferecer. É um procedimento científico, necessário. Mas também não deixa de ser interessante notarmos essas etimologias populares, por vezes de grande valor etnográfico, desde que se clarifique o seu carácter precisamente fantástico. A imaginação dessas etimologias responde a maioria das vezes à mesma necessidade de explicar a realidade que, com mais elaboração, origina mitos e mitologias. Outras vezes, o que há é uma interessada política narrativa que encontra nas fundações heróicas e nas origens fantásticas um lugar para a expressão do que se quer que seja a grandeza de uma cidade ou de uma nação.

A respeito desta última tipologia, a relacionada com os mitos de fundação, em 1747 foi publicado em Madrid a obra Población general de España: historia chronologica, sus tropheos, blasones y conquistas heroycas, de Juan Antonio de Estrada, que tinha como objetivo assinalar a grandeza das Espanhas, na linha do que expressa no prólogo, a saber:
"España Triumphante, bien celebrada por Insigne, Opulenta, y Rica, que hace Cabeza Imperial del Dragòn de Europa, y es la mas Occidentàl de toda ella, Emperatriz de dos Mundos, la Reyna de las Provincias, Princesa de las Naciones, Terror de los Infieles, Columna de la Religion Catholica, Trompa sonòra del Evangelio, y Primogenita de la Christiandad; à quien las edades aclaman Ilustre, pregonan Excelente, publìcan Valiente, confiessan Invicta, y aplauden Soberana"
Enfim, quase nada. Dragões e realezas à margem, a obra continua oferecendo toda uma série de simpáticas etimologias e fundações, das que, nas vindouras notas, vou apenas signar as que tocam ao nosso país.

Uma descrição à castelhana

Antes de mais, contudo, não me resisto a copiar a descrição do reino da Galiza que se faz na obra, mesmo que seja apenas notando aquelas passagens que pudessem ter algo a ver com a toponímia e com o modo como os nomes comuns se terminam convertendo em nomes do país. Diz Estrada:
El Reyno de Galicia que Justino con justa razon alaba, confina por la parte Orientàl con el de Leon, y Principado de Asturias; al Medio-dia con Portugàl; bañandole al Poniente el Mar Occeano Atlantico; y al Norte el Cantabrico, quedando casi en forma quadrada que comprehende 45 leguas, baxo del Signo de Piscis todo su Territorio, donde hay siete Ciudades, muchas Villas, y Lugares, 54 Fortalezas; pero oy algunas arruinadas, 45 Puertos Maritimos; un Arzobispado, y quatro Obispados [...] Le riegan diversos Rios, el mas crecido es Miño, llamado en Latin Minius, por el mucho Bermellòn de que abunda [...] Goza de lindas Fuentes, y con cinco salutiferos Baños. El clyma es algo destemplado por los frios, mas reparado con abundante Leña, y Carbòn de sus fragosas Montañas, donde cortan mucho Maderage para Fabrica de Naves. [...] Los Naturales hablan la Lengua, ò Idioma Castellana; pero la Gente comun, mezclada con la Portuguesa, que viene à quedar algo tosca, poco politica, y menos harmoniosa. Son piadosas, dóciles, afables, constantes à lo que una vez se inclinan; costumbre (segun parece) originada de los Griegos sus Progenitores [...] Hay un famoso Cabo, llamado Finis-Terre, por haver entendido sus Pobladores havian llegado al fin de la Tierra, donde se fundò una Ciudad de Santa Maria del mismo nombre del Cabo. Sus Rios principales son, ademàs del referido Miño; Aviafis, Cilinca, Miranda, y Tamaucilla. Tiene tambien su nacimiento aqui el Rio de Lima, que llamaron los Antiguos el Lethèo, ò el Olvido [...].
Várias cousas podem ser ditas a respeito destes trechos. Vou obviar o tema de confundir as falas galego-portuguesas com uma mistura de castelhano e português e vou apontar, apenas, a referência às sete cidades, que, convém notar, não é isso das atuais "sete grandes cidades" que hoje tanto gostam alguns meios e pessoas de dizer na Galiza. Em concreto: Vigo, Ponte Vedra e Ferrol não são, nesta época, cidades, mas vilas, e assim aparecem tratadas no texto de Estrada. E, ao contrário, sim aparecem designadas como cidades Mondonhedo, Betanços e Tui, que têm ainda hoje esse tratamento, mas que não aparecem na nómina das grandes urbes do país — tendo em conta, aliás, que, comparativamente com outros territórios europeus, as cidades galegas resultam pequenas e menos povoadas. A maior, Vigo, não ultrapassa trezentos mil habitantes.

Origem do corónimo Galiza

A descrição da Galiza de Estrada continua com um tema central para nós, a etimologia e a sua relação com os mitos de fundação. Diz:
Acerca de la ethymologìa de Galicia hay tres distintinas opiniones: la primera, quieren sea originada de Gatelo, hijo de Cecrope, Rey Atheniense, que llegando à Porto, como alli se refiere, habitaron este Reyno, y se llamaron Gatelos, corrupto Gallegos. Segunda: Dice San Isidoro provino por ser Tierra fria, y criarse sus Naturales blancos, sonando esto la voz Gallegos. La tercera, y la mas cierta, es, que poblandola Galos Celtas año 290 antes de la humana Redempcion, junto con Griegos, le dieron nombre de Galo Grecia, alterado en Galicia [...].
À margem da referência de S. Isidoro, que me declaro absolutamente incompetente para decifrar, e da explicação que recorre a Galo Grécia e que Estrada considera mais certa, tem interesse como lenda fundacional a referência a Gatelo, embora Estrada a considere "menos certa": Gatelo ou Catelo, que aparece no Livro das Invasões da Irlanda como Gaedhil Glas, está vinculado também numa lenda fundacional como personalidade responsável pelo nascimento de Portugal. Com efeito, são emissários portugueses encabeçados por Gaspar Palha e enviados à Escócia por Dom João III, quem escutaram pola primeira vez esta história, segundo a qual os fundadores da Escócia e da Irlanda teriam saído da Ibéria após Gatelo ter fundado o Portus Gateli, isto é, Portugal — bem antes de Dom Afonso Henriques, é claro. Tão claro que, provavelmente conhecendo esta lenda, o historiador do século XVI Fernando de Oliveira chega a dizer que Afonso Henriques é apenas um refundador.

Uma tendência

Enfim, não é por acaso que esta tendência para as lendas fundacionais se produza durante o Renascimento europeu, não tanto polo facto em si de produzir um mito urbigónico, mas, principalmente, por situar as aspirações de nobreza e posteridade no tempo dos clássicos grecolatinos (e, lateralmente, também semíticos bíblicos). Nas próximas notas a respeito das fundações míticas das cidades e vilas galegas veremos, com efeito, mais referências ao tândem Grécia-Roma: Hércules teria fundado a Crunha; o Imperador César em pessoa, a cidade de Lugo e a vila de Riba d'Eu; Amphyloco, Ourense; Bruto, Mondonhedo; o referido Gatelo, Betanços; Teucro, Ponte Vedra; Diomedes, Riba d'Ávia, Padrão e Monforte, e assim por diante, completando-se ainda com referências às genealogias bíblicas segundo as quais Gondomar teria sido fundado por Gomer, filho de Japhet, filho de Noé; e Noia por Noela. Não havia, portanto, cidade insigne, ou que pretendesse sê-lo, que não tivesse a sua fundação mítica. Até a própria Roma, embora anterior, tinha o seu mito.

Comentários

  1. Tem um interessante trabalho o defunto J. J. Moralejo, titulado "Etimologías de Gallaecia" se não lembro mal (está recolhido na colectânea "Callaica Nomina"), em que analisa várias das (pseudo)etimologias relativas ao nome do nosso país, e entre elas as linhas interpretativas que derivaram da explicação dada por Isidoro de Híspalis, segundo a qual "Gallaecia" e "galaicos" teria a ver com o grego "gala" 'leite'. Numa derivação desta hipótese (que deve ser a que reproduz Estrada no trecho que transcreves), considerava-se que, por terem Galiza e a Gália climas frios e céus freqüentemente cobertos, os seus respectivos naturais eram muito brancos de pele, e daí que se aplicasse a comparação com o leite.

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