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O poder de nomear

Um anúncio da Junta da Galiza a respeito da toponímia galega está a gerar já alguma controvérsia, com expressões, como a de Carlos Callón, que sobardam a incredulidade para qualificar a medida de puramente cínica. Quem habitar na Galiza saberá que a toponímia é um âmbito em conflito permanente entre, de uma banda, as práticas colonizadoras assentadas durante décadas pola ditadura e polo capital, com mais força quanto maior for, não por acaso; e, de outra, a vontade de reapropriação popular do que lhe é próprio, que é a faculdade de nomear. Que a direita espanhola a governar na Junta da Galiza apresente agora uma medida como esta é cinismo puro, tem razão Carlos Callón. Mas, sobre a faculdade de nomear e sobre a importância que isso tem, quero apenas extractar a continuação um trecho escrito por Xoán Carlos Lagares Diez num texto intitulado Sobre a noção de galego-português.

O poder de nomear

Nomear é uma forma de intervir sobre a realidade, e o ato de renomear pode produzir, de fato, uma espécie de reorganização do mundo. Mas, afinal, esse poder está reservado a uns poucos. Fiorin1, ao apresentar a noção saussuriana da arbitrariedade do signo linguístico, que tem como corolário a convenção social, cita uma interessante passagem das Aventuras de Alice:
– Não sei bem o que o senhor entende por “glória” –, disse Alice.
Humpty Dumpty sorriu com desdém. – Claro que você não sabe, até eu lhe dizer. O que eu quero dizer é: “eis aí um argumento arrasador para você”.
– Mas “glória” não significa “um argumento arrasador” –, objetou Alice.
– Quando uso uma palavra –, disse Humpty Dumpty em tom escarninho – ela significa exatamente aquilo que quero que ela signifique... nem mais nem menos.
– A questão –, ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
– A questão –, replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso (O grifo é nosso).
Como comenta Fiorin, o que resulta absurdo nessa passagem é o fato de Humpty Dumpty pretender passar por cima das convenções que presidem o uso da linguagem, querendo criar significados particulares para signos já existentes, o qual tornaria impossível a comunicação. Mas com a réplica do personagem à ponderação de Alice, Lewis leva a questão a muito mais longe, pois problematiza esse consenso entre os falantes de uma dada comunidade linguuística em torno do significado de suas palavras. Com efeito, quem manda tem a faculdade de propor e, com frequência, de impor novas relações entre significante e significado, ao serviço de ideologias que justifiquem e permitam a manutenção da ordem social dominante2.

Os países colonizadores atribuem-se a faculdade de nomear os lugares conquistados, embora aqueles lugares já tivessem nome nas línguas dos povos colonizados. Assim, num mesmo gesto, inaugura-se através desse ato simbólico uma nova realidade, enquanto se apagam os rastos das culturas vencidas. A cerimônia de baptismo das terras conquistadas representa na realidade um ritual de apropriação. É através do ato de nomear que se toma posse dos novos territórios.


Um exemplo de intervenção na sinalética galega
Na Galiza, a castelhanização dos topônimos foi uma das formas usadas pelo poder central para submeter esse território à unidade (que frequentemente, em termos políticos, não é mais do que uniformidade) do Estado. Assim, foram sendo trasladados à língua oficial todos os nomes de lugar: d’A Corunha para La Coruña, de Ourense para Orense, e assim por diante. A castelhanização supõe em alguns casos uma tentativa de tradução, muitas vezes fantasiosa, ignorando o significado dos nomes. Viana do Bolo, por exemplo, passou a ser denominada Viana del Bollo, Mesón do Bento foi traduzido erradamente como Mesón del Viento, o bairro corunhês da Agrela passou a ser conhecido oficialmente como de La Grela e, no cúmulo do absurdo, o lugar denominado O Ninho d’Águia como El niño de la Guía. Não sabemos o que foi que freou o impulso castelhanizador em casos como Pontevedra, que nunca foi Puentevedra nem, traduzindo também a segunda parte do nome, que é um arcaísmo em galego, Puenteviejo. Em outras ocasiões, renunciou-se a decodificar o significado dos nomes e optou-se pela simples adaptação fonética ao espanhol, como nos casos em que Teixeiro passou a ser Teijeiro (com a pronuncia /x/ do castelhano) ou Aceadama se converteu num inexplicável Haciadama.

Como afirma Calvet:
os nomes dos povos, os nomes dos lugares não pararam de variar, de acordo com as invasões ou alternâncias de poder. Desse modo, há uma constante valsa toponímica e etnonímica, que pode testemunhar uma aproximação fonética (quando na África, por exemplo, a língua bãmana transformou-se em bambara, ou o pulaar se tornou peul), uma alusão pejorativa (quando os índios Shuars são chamados pelos espanhóis de jibaros, isto é, camponeses) e às vezes um desejo identitário (quando o Congo Belga se tornou Zaire e, depois, República Democrática do Congo)3.
Essas mudanças de denominação são, como também lembra o próprio Calvet, evidentes atos de política linguística. Quando na Espanha a Constituição de 1978 chama castelhano à língua espanhola oficial do Estado, ela está nesse mesmo gesto instaurando uma política determinada a respeito das línguas de Espanha, que passam também a ser consideradas línguas espanholas. Imbuído nesse fato está o reconhecimento de que não há uma correspondência absoluta entre o nome do Estado-nação, Espanha, e sua língua oficial, que pelo nome se identifica com apenas uma de suas regiões, Castela. Ao mesmo tempo, ao assumir a diversidade linguística do Estado, a Constituição assimila à categoria de espanholas as línguas co-oficiais da Galiza, Catalunha e o País Basco. A diversidade passa a ser considerada “riqueza cultural”, numa nova ideologia linguuística costurada de velhas idéias sobre o que deve ser a nação, enquanto se mantém a idéia de unidade com o castelhano cumprindo a função de “língua comum”, “de encontro”, “de concórdia” e mesmo, numa pirueta discursiva, de língua propícia para o exercício da democracia4. A expressão que condensa essa ideologia é “Unidade na Diversidade”.

Notas:

  1. FIORIN, José Luiz. “Teoria dos signos”, in José Luiz Fiorin (org.). Introdução à Lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2007 (5a ed.), pp. 60-61.
  2. Assim é como novos significados nos são impostos pelos processos de criação de consenso das sociedades capitalistas pós-industriais, que convertem, por exemplo, os empresários em ‘criadores de empregos’ ou que escamoteiam a dimensão de força de trabalho do operariado ao enquadrá-lo na categoria de ‘capital humano’. Nesse sentido, a luta pelos significados é uma das dimensões dos conflitos sociais e ideológicos. Quando se aprovou a lei do matrimônio homossexual na Espanha, por exemplo, coletivos de juristas e acadêmicos da língua se levantaram em protesto contra o uso da palavra matrimônio para designar esse tipo de união civil, defendendo, na realidade, mediante o controle do significado (técnico) desse substantivo, um modelo tradicional de família.
  3. CALVET, Louis-Jean. As políticas lingüísticas. São Paulo: Parábola Editorial/IPOL, 2007, pp. 78-79.
  4. Veja-se, nesse sentido, o que diz Del Valle: “Ya el relativo fracaso del nacionalismo liberal decimonónico puso de manifiesto el hecho de que la superioridad práctica de una lengua no basta para vencer el poder de lealtades lingüísticas establecidas de un modo, digamos, más primordial. De ahí que en la actualidad se insista no sólo en la utilidad del español sino también en su asociación con valores universales superiores, tales como la concordia y la democracia, que estimulen la formación de vínculos más “emocionantes” entre la lengua y los individuos que integran o que se aspira a que integren la comunidad”. DEL VALLE, José. “La lengua patria común: Política lingüística, política exterior y el post-nacionalismo hispánico”, in Roger Wright y Peter Ricketts (eds.), Studies on Ibero-Romance Linguistics Dedicated to Ralph Penny, Newark [Delaware], Juan de la Cuesta Monographs (Estudios Lingüísticos n.o 7), 2005, pp. 391-416.

Comentários

  1. Interessante a iniciativa de Sinaliza! Mentres nom sejamos capazes de corrigir as barbaridades toponímicas do Franquismo e do PP, pouco vamos poder fazer. Exemplo: a wikipedia espanhola e os topónimos galegos.

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    1. O tema da Wikipédia espanhola, penso, é para "darle de comer aparte", mas é um bom exemplo do que diz Lagares Díez. Castela tem, desde há anos, a faculdade de nomear tudo, e não vai renunciar a esse poder por própria vontade. É justamente por isso que há conflito.

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