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Todo o poder aos concelhos: um levante popular de 1117

“Berravam desde fora: «que saia a rainha se quer, para ela damos permissão; os demais que morram a ferro e lume». [...] Saiu a rainha da torre. Quando a viram, botaram-se a ela, agarraram-na e tiraram-na no chão, na lama, raptaram-na como lobos e rasgaram-lhe os vestidos. Com o corpo despido de peito para baixo, ficou vergonhentamente exposta diante de todos durante muito tempo. Muitos quiseram lapidá-la e uma velha feriu-a gravemente na meixela com uma pedra.” Isto foi por 1117, há novecentos anos, em Compostela. E assim o conta a História Compostelana, livro 1, capítulo 114.

O relato — um dos que ficam ocultos entre o silenciamento geral da história medieval da Galiza — é o de um dos primeiros levantes populares urbanos da Europa medieval, que a historiografia tradicional explica como uma simples sequência dos conflitos sucessórios dos reinos da Galiza, Leão e Castela após a morte do rei Afonso VI. Com efeito, a assim humilhada era a raínha Urraca (filha desse mesmo Afonso), que em 1107 assinava como imperatriz de toda a Galiza; e o lugar do que a deixavam sair para depois a espancar publicamente era o palácio arcebispal de Diego Gelmires que, por certo, conseguira fugir daquela situação por uma porta traseira e disfarçado de mulher, o que para a época não deixava de ser uma humilhação considerável. Mas quem protagonizava aquele levante?


Miniatura da raínha Urraca, correspondente ao Tombo A da Catedral de Compostela. Na cartela que sustém, pode ler-se: URAKA⋮REGINA⋮ADEFONSIS⋮FILIA⋮CONFIRMAT

Compostela era, naquele começo do século XII, uma das principais cidades europeias. O núcleo urbano, constituído precocemente a partir do mito apostólico, tinha uma população burguesa medieval já assentada, que se opunha a continuar submetida ao senhorio arcebispal, e exigia instituições políticas próprias, para o qual se havia organizar numa irmandade urbana relativamente poderosa. Aqueles homens — porque as mulheres foram deixadas à margem, como era habitual — não só se atreveram a atacar o poder feudal exercido, neste caso, por meio da igreja. Foram, ainda, muito além: até à formação de um conçelho com competências políticas nunca antes detentadas que, entre 1116 e 1117, chegou a governar a cidade por completo à margem do arcebispo.

Finalmente, a resolução do conflito dinástico e a aparição de contradições internas na irmandade compostelã, com um setor favorável ao restabelecimento da situação de partida, Gelmires conseguirá recuperar o seu papel de senhor. Mas, mesmo assim, o poder leigo na cidade ficaria certamente reforçado.

Burguesia, soberania, classe

Além do significativo do exemplo, pola sua radicalização e pola sua cronologia, Anselmo López Carreira, que recolhe a revolta no seu livro A cidade medieval galega (Vigo, 1999), explica como, além das luitas dinásticas, o episódio de Compostela de 1117 não pode considerar-se um acontecimento isolado. Bem ao contrário, terminaria reeditando-se em 1136 na mesma cidade e também noutros lugares, como Lugo, na segunda metade do século, com idêntico resultado: as nascentes burguesias locais, por meio da força das ocupações de terrenos do senhorio ou de agressões diretas como a narrada contra a raínha Urraca, conseguiam controlar e governar a cidade momentaneamente, até em períodos que ultrapassavam o ano. E, finalmente, terminavam forçando a aceitação das suas exigências, que iam sistematicamente na linha de retirar poder dos senhorios feudais e o entregar aos cada vez mais poderosos concelhos.

Esta luta polo poder urbano, que se dá muito cedo na Galiza e que continua durante todo o século XIII e XIV até derivar, no século XV, na criação da Irmandade Fusquenlha e das guerras irmandinhas foi, portanto, um processo complexo. Um processo que podia ter por objectivo a substituição do poder feudal por um poder forâneo (o do monarca), mas que deve ser valorizado em relação a outras duas realidades. Em primeiro lugar, que não existia, nem existiria em muito tempo, um conceito de nação análogo ou sequer similar ao que hoje manejam as luitas contra o sistema estabelecido em países como Galiza, com os direitos políticos conculcados em grande parte, de maneira que a luta pola soberania era uma luta do imediato, pola soberania do espaço mais próximo. E em segundo lugar, que ainda quando os pleitos e revoltas que vinham acontecendo desde o século XII não tivessem um carácter nacional, evidenciavam efetivamente rasgos da luta de classes que, nesta fase, opunha a burguesia das renascentes cidades aos interesses de classe do clero e da monarquia, ainda quando amiúde se tentasse usar a última como panca frente à primeira.

Em resumo: houve um tempo em que a Galiza adiantava acontecimentos e no que se viveu um renascimento pioneiro das cidades que teve o seu próprio conflito, o dumha classe emergente nascida à sombra dos burgos que exigia direitos políticos às portas do poder político. Antes eram os bispos. Hoje não são apenas eles.

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