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Das igrejas e da geo-referencialidade

Diz José da Cunha que, "nos primeiros séculos da cristianização peninsular, a presença de uma igreja era uma marca de tal modo importante e rara no espaço geográfico, histórico e cultural que merecia diferenciá-lo toponimicamente". A ciência toponímica explica que esse é, precisamente, um dos condicionantes sine quae non para o estabelecimento de um topónimo. Mas, em qualquer caso, mesmo sendo efetivamente certo o que Cunha indica, parece que a relevância que justifica salientar a igreja em forma de topónimo não se deveu produzir apenas nos primeiros séculos da cristianização. Vejamos.

É certo que nessa época a igreja é um facto diferenciado, raro, com efeito, por palavras de Cunha. Ora, mesmo durante o século XI, quando Raoul Glaber ressumia o fenómeno de proliferação de igrejas por toda a parte na Europa ocidental, chegando a dizer aquela conhecida frase triunfal em que o mundo se revestia de um "branco manto de igrejas", a nível microtoponímico, a igreja deveu continuar a ser um elemento suficientemente salientável. A igreja deveu ser um ponto referencial, nomeadamente geo-referencial, para a organização social da paróquia, que na Galiza e também no norte de Portugal, tinha uma entidade própria - tanto assim que na Galiza ainda conservam até valor jurídico-administrativo. De modo que não parece que, maioritariamente, os topónimos "igreja" provenham dessa época da primeira cristianização peninsular.


Igreja de sta. Comba de Bande, uma das mais antigas a sobreviver hoje na Galiza (fotografia da década de 1940)


Todavia, outra coisa é que, quando menos na Galiza (para Portugal haveria uma outra cronologia, logicamente mais seródia, por causa da presença árabe), a maioria das paróquias estejam estabelecidas desde há séculos, como demonstra a tipologia românica das suas igrejas, e que, mesmo no caso em que a tipologia for posterior, nomeadamente barroca (considerando que na Galiza o estilo barroco chegou muito tardiamente), exista uma anterior construção românica reformada. Ainda, abundam os templos de ábsida românica e portada ocidental barroca - explicável pela explosão demográfica da época, que fez com que as igrejas medrassem, avançando, em boa lógica, pela parte oposta à cabeceira.

Mas não só em forma de igreja é que aparecem as igrejas. Antes do s. VIII havia já igrejas que os povos árabes se encarregariam de traduzir em formas como Alcaena, Alcanizes, Alcainça, Alcains e Alcainz. Dessa época serão também, pois, as diferentes Mesquitas que povoariam o norte peninsular, e especialmente o sul. Depois da "reconquista", com a nova expansão cristã para o sul ibérico, as igrejas teriam regressado, também sob as formas linguísticas próprias dessa época: Gricha, Grija, Grijário, Grijalva, Irije (do lat. ecclesia), e Grijó, Irijó e Irijoa (do lat. ecclesiola, igreja pequena); e, andando o tempo, teriam vindo a ser completadas com formas mais recentes como Eireja, Eirija, Eireje, Eirejua, Eirejalva ou Eirije, com a transformação de "i-" em "ei-", evolução que depois desaparece de novo para Igreja (e até vários Duas Igrejas, um em Forcarei, Galiza, e outros disseminados pelo norte de Portugal).

Enfim: se tomado em consideração o espantoso poder que concentrava e exercia (e ainda concentra e exerce) a instituição Igreja, nomeadamente nas áreas rurais (Capela, 2005: 101-111), as igrejas como templo serão, sem dúvida, poderosos elementos conformadores de toponímia em qualquer época, e também, do mesmo modo, as capelas (do lat. medieval cappella, já sem valor diminutivo, mas performativo), os mosteiros, as celas (também as mesquitas) e outros edifícios do campo semântico e dos que haverá que falar com mais vagar noutra ocasião.

Comentários

  1. Ao respeito e a modo de atualização: Mesquita é fitónimo em galego-português, no mínimo documentado na Galiza polo padre Sarmiento, no seu Onomástico (1757-1762). Pois, em cada caso parece aconselhável revisar a possibilidade de que essas Mesquitas sejam fitotopónimos.


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