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Artigo ou mutilação?

Eu cheguei ao estudo da toponímia ao ver como, em multidão de casos, os nomes de lugar do meu país estavam incorretamente escritos. Não estou a falar do modo como o fascismo espanhol se dedicou selvagem e alegremente a deturpar a toponímia galega, mas de como, amiúde, os próprios utentes do português galego, nomeadamente durante a época conhecida como Séculos Escuros, mas também antes, começaram a perder constância da morfologia e do significado de alguns dos seus topónimos. Em concreto, referirei-me ao caso da toponímia composta por falso artigo + nome.

Não há regras

Em primeiro lugar, vaia por diante, não existe em português qualquer regra referida ao uso do artigo antecedendo topónimos. O uso é que faz a norma. E, com o uso, há topónimos que costumam levar artigo, como o Porto, e outros que costumam não levar, como Vigo. Há quem sustenha que a aparição do artigo se produz naqueles topónimos em que o nome tem um significado certo para o falante. Isso aconteceria, por exemplo, com as cidades do Porto e do Rio de Janeiro, porquanto as palavras "Porto" e "Rio" têm um significado evidente para qualquer pessoa da lusofonia. A diferença estaria, segundo essa hipótese, em haver ou não haver certeza ou evidência do significado. De modo que, por essa via, embora Vigo tenha um significado etimológico (do latim uicus, vila), o facto de não se corresponder com nenhuma palavra utilizada quotidianamente desde séculos seria o motivo pelo qual não iria fazer sentido "o Vigo". A hipótese, embora pareça ser válida para muitos casos, não serve assim para todos. Confrontem-se os casos de Vigo e a Crunha: o topónimo Crunha não parece ter qualquer significado evidente, pois a provável referência à clunia latina está já perdida para os seus moradores (como a de uicus), e, contudo, mantém o artigo. Sobre a Crunha há já uma nota neste caderno, pelo que não entrarei mais em detalhe agora. Apenas interessa destacar a presença desse artigo.

A mutilação

Em qualquer caso, são numerosos os exemplos de topónimos que, começados por "a-" e por "o-" se foram deturpando de tal modo que esses primeiros fonemas ficaram isolados da palavra por analogia com os artigos galego-portugueses. Veja-se o caso, por exemplo, de Agolada, do latim Aqua latam, isto é "água levada" ou "água conduzida", que amiúde foi grafado como A Golada ou, simplesmente, Golada - forma depois naturalizada assim ou na sua versão La Golada pelo nacionalismo linguístico espanhol. É certo que existem na Galiza topónimos Golada, com o significado de "passo estreito de montanha", proveniente do latim gulata < gula (gorja), como Golada de Cardiadelos, Golada de Branha Nova ou Golada da Vara, todos na zona dos Ancares [Cabeza Quiles, 2001: 201], mas não parece que isto seja sob nenhuma hipótese aplicável ao caso de Agolada, como demonstra a existência da variante Agualada noutras áreas da Galiza em que não se produziu o feche -ua- em -o- e do gentilício "agolense", que não faria sentido se a palavra proviesse de gulata. O mesmo que acontece com Agolada, e que, por contra, não ocorre com Agualada, que não sofreu a mutilação acima referida, sim aconteceu com Agrela, que se transforma em A Grela, perdendo o seu significado etimológico de "agro pequeno" derivado do latim agra (agra, campo) mais o sufixo diminutivo -illa. E também com Avanha (graf. isol. A Baña), que provêm do latim auania, relacionado com o indo-germânico *abanko [Hubschmid, 1952: 53] que, com o significado de "vime", parece ter ocorrência também no topónimo occitano Avanha (francês Abajan), sem que lá se produzisse a desagregação da primeira vogal, que na Galiza está já documentada em 1267 (TMILG) e que se manteve até hoje, como no caso de A Grela, e a diferença de Agolada, cuja forma A Golada foi recentemente corrigida no nomenclátor oficial da Junta da Galiza e começa novamente a ganhar naturalidade. Também em processo de recuperação está o corónimo Amaía, que, porém, sofreu não só a segregação do "a" inicial, como também a aparição de um estranho "h" interno (A Mahía, graf. isol) se considerado o étimo de que procede: Amaea, nome que se mantém inalterado, no mínimo, até 1225 (CODOLGA), relacionado com o território que ocupara a antiga tribo celta dos amaeos.

A separação de "a-" como artigo também acontece com "o-", pelo mesmo motivo: a homofonia com o artigo. Deste modo, Ogêm, do antropónimo greco-latino Eugeniu, transforma-se em O Gem (graf. isol. O Xen). Possivelmente também de um antropónimo proceda Ovinhão, que não teria nada a ver com as vinhas, pois, mas com a forma latina "[villam de] Oviniano", ou, mais provavelmente ainda, com o hidrónimo *ovin (CODOLGA), presente em fórmulas efetivamente hídricas como "discurrente riuulo Ouiniano" (1069) e em formas já toponímicas como "hereditate pernominata Ouines" (1123) ou "in Ovinia" (1151). Também sofre desagregação Ogrobe (med. Ocobre) que, com a terminação -bre ou -briga que no noroeste ibérico tomam as formas -bris e -brix presentes noutros territórios de influência céltica, aparece já separadamente numa notação notarial de 1444 do concelho de Ponte Vedra (TMILG, *Grove) e, daí, transforma-se em O Grobe (graf. isol. O Grove). O mesmo acontece com Oíncio, que deu O Íncio (graf. isol. O Incio) a partir da forma medieval Onitio, proveniente, por sua vez, do orónimo uindiu, que designa uma cadeia de montanhas e que é muito mais provável do que o celta vind-, com o significado de "branco".

Uma conclusão

Enfim: diversos estudos científicos advogaram pela recuperação destes topónimos deturpados. Como já foi dito, o processo está completo no caso de Agolada, e a meio caminho no caso de Amaía, cuja forma isolacionista A Mahía resulta especialmente fora de lugar, desde que existe como centro dessa comarca o topónimo Ames, que se manteve inalterado desde que há constância dele, em 1349 (TMILG). Mas, como norma geral, o isolacionismo manteve-se à margem destas deturpações, amiúde reforçadas pela ré-deturpação que constituiu a adaptação desses topónimos para o castelhano sob a influência ultra-nacionalista do fascismo espanhol; de forma que hoje é o reintegracionismo que aposta claramente pela reintegração das partes mutiladas e convertidas em falsos artigos, propondo Agolada, como no caso do isolacionismo, mas também, diferentemente dele, Avanha, Amaía, Ogrobe, Oíncio, Ogêm, ou Ovinhão, entre outros.

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